Depois de acompanhar os primeiros passos do Aeroporto de Navegantes, a coluna “Outros quinhentos” vai até o Canto do Molhe, na Praia do Pontal, para contar outra história que fez parte desses últimos 60 anos em Navegantes.
Foi lá, em 1974, que um grupo de jovens começou praticar o surfe na cidade. Diferente de hoje, onde o esporte é valorizado, inclusive com campeões mundiais e medalhistas olímpicos, na década de 1970 o surfe era marginalizado.
A história começa quando dois jovens trouxeram de Florianópolis uma prancha. O equipamento pertencia ao surfista carioca, Fernando Moniz. Marreco como é conhecido, foi um dos pioneiros do surfe na Ilha de Santa Catarina e junto com Lars Kreuger, surfaram pela primeira vez em Navegantes, em 1972.
Em 1974, os primos Emilson e João Roberto Reiser estudavam em Florianópolis e conheceram Marreco na Barra da Lagoa, onde ele surfava. Enquanto um dos primos distraiu o surfista carioca, o outro pegou a prancha e levou até seu carro, um Opala. Começava assim a história do esporte em Navegantes.
Os pioneiros do surfe
Com a prancha do Marreco, os primos começaram a surfar. O ponto onde quebrava as melhores ondas era o Canto do Molhe, na Praia do Pontal. Com o tempo, a prancha começou a chamar atenção dos moradores, principalmente dos mais jovens.
– Minha avó era vizinha da casa do Emilson. Um dia eu vi eles com a prancha indo para a praia. Então eu fui sem o meu pai saber. Eu comecei com eles, sempre escondido. Um dia ofereceram a prancha, eu peguei e entrei na água. Tentei pegar espuma, ficar em pé, mas a prancha era muito grande. No começo foi difícil, a prancha pesava quase dez quilos, mas depois disso eu não parei mais – recorda Eduardo Mafra, que em 1974 tinha apenas 13 anos.
Segundo o surfista, ele só soube que a prancha foi roubada em Florianópolis, há oito anos.
– Foi quando a gente comemorou os 40 anos do surfe em Navegantes, em 2014. O Emilson contou que ele e o João Roberto levaram a prancha do Marreco. Até então ninguém sabia de nada – conta.
Em Navegantes, as melhores ondas quebravam num lugar que os surfistas chamavam de “casinha”.
– Nós pegamos a continuação do molhe, que antigamente era só pedras até o farol. Então, a Cobrasil (empresa responsável pela construção dos molhes de Itajaí e Navegantes) começou aumentar o caminho até o farol para a Marinha chegar. Ali a Cobrasil fez uma casinha de madeira para colocar os equipamentos. Quando quebrava as ondas grandes, o pessoal dizia: “Está quebrando na casinha.” Surfávamos também no Gravatá e na Penha. A Praia do Quilombo (Penha) fomos nós que descobrimos. Não tinha surfistas lá – conta.
Eduardo lembra também das dificuldades para surfar em 1974.
– No começo era uma prancha só, a prancha roubada. Um emprestava para o outro. Antigamente não tinha parafina para passar na prancha. A gente pingava vela e depois de seca, esticava. No inverno a gente caía na água com o casaco de lã e aquilo grudava no corpo. Depois eu comecei a usar uma blusa cacharrel de gola alta da minha mãe. Na época não existia roupa de borracha para o frio, era roupa de mergulho.
Outro obstáculo enfrentado pelo surfista e os outros jovens navegantinos na época foi o preconceito.
– Tinha uma frase que dizia assim: “Nem todo maconheiro é surfista, mas todo surfista é maconheiro”. Os pais estavam sempre preocupados e sempre cobrando. Minha mãe quando chegava em casa sempre cheirava a minha roupa para ver seu tinha fumado. Eu nunca fumei nada na minha vida. Era um esporte novo e taxado como praticado por vagabundos e maconheiros. Isso começou a mudar depois que os brasileiros começaram a despontar no surfe mundial, isso aí faz uns sete ou oito anos atrás. O preconceito ainda tem até hoje.
Ao som de Pink Floyd, Dire Straits, Bob Dylan e Zé Ramalho, os jovens se reuniam na praia nos dias de inverno.
– Nós fazíamos uma fogueira na praia e tomávamos uma bebida que levava cachaça, mel e limão. Era para gente enfrentar o frio. O som era o do fusca e ali ficávamos ouvindo Pink Floyd, Dire Straits e Bob Dylan. O pessoal gostava muito também do Zé Ramalho e Geraldo Vandré.
Nesses 48 anos de surfe em Navegantes, Eduardo cita um fato que marcou sua vida no esporte. Foi um naufrágio que aconteceu na entrada do Canal da Barra no dia 6 de setembro de 1977. Na ocasião um barco de pesca se perdeu durante uma forte ressaca e bateu no molhe. Dos 13 pescadores que estavam na embarcação apenas dois sobreviveram.
– O nome do barco era “Dominante”, era uma traineira, um barco de camarão. Ficou uma ressaca que não deu como surfar. Dois se salvaram, um saiu nadando e o outro se jogou nas pedras. O molhe parecia uma procissão, ficou lotado, dia e noite, o pessoal com vela. Depois de uma semana os corpos começaram a dar na praia, perto do antigo Hotel Costa. Essa foi uma das coisas que marcou minha vida. Marcou pelo choro das mães que perderam os filhos e pela tragédia que foi.
A prancha roubada
De volta a prancha roubada, na Barra da Lagoa, em Floripa, a coluna “Outros quinhentos” encontrou Fernando Moniz, 70 anos, em Urubici, na Serra Catarinense. Quando soube da história, Marreco caiu na gargalhada.
– Que história! Isso faz mais de 40 anos e eu nem me lembro mais. Já me roubaram tantas pranchas que perdi a conta – disse o surfista.
Marreco contou que a prancha foi feita em Cabeçudas, em Itajaí.
– Eu e um outro surfista, o Lars Kreuger, fabricávamos pranchas numa garagem em Cabeçudas. Essa prancha deve ter sido feita entre 1972 e 1974. A gente já surfava na Atalaia e Navegantes nessa época – explica.
O surfista que mora hoje em Urubici e é dono de restaurante, ficou feliz que sua prancha ajudou a levar o surfe para Navegantes.
– Fico muito feliz. Pelo menos foi por uma nobre causa – finaliza o agora chef Moniz.
O colunista não conseguiu encontrar o Emilson Reiser, mas fica a homenagem a ele, ao João Roberto Reiser (in memoriam), Eduardo Mafra, Nolo Rodrigues, Ezequiel Rocha, Rudi, Sábia (in memoriam), Luci e tantos outros pioneiros do surfe em Navegantes, bem como ao próprio Marreco e sua prancha roubada.