Um Grito Denunciado

ACADEMIA DE LETRAS DO BRASIL DE SANTA CATARINA – SECCIONAL NAVEGANTES 

Acadêmica Professora Nalba Lima de Souza, cadeira n. 3, Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

(O Jornal não tem responsabilidade pelos textos escritos pelos colunistas)

Na narrativa tradicional os fatos se desenvolviam com linearidade, seguindo a sequência início, meio e fim, com o tempo correndo paralelo ao desenvolvimento da obra.

No romance contemporâneo, mais especificamente, os da década de 1970, os textos são fragmentados, constituídos por partes que vão formando um todo unitário, como se fosse um jogo de montagem. Essas interrupções da linearidade da narrativa possibilitam ao leitor um posicionamento crítico sobre os fatos políticos do país e suas consequências na vida das pessoas. Não existe, também, um herói com características preestabelecidas, como no romance tradicional e, sim, criaturas sem individualidade definida, que lutam, que gritam, que protestam, que denunciam e criticam o momento histórico e social da época comportando, assim, o posicionamento crítico do autor que, paralelo ao que pretende narrar, documenta o todo de uma época, marcada pelas torturas, injustiças, opressões, tudo narrado numa linguagem cotidiana, objetiva, além dos recursos das revistas, música, poesia, fórmulas publicitárias, recortes e técnicas de jornal.

Nessa linha surge “Mês de Cães Danados”, Porto Alegre, LPM Editores Ltda., 1997, do gaúcho Moacyr Scliar, “romance organizado em forma de diário, onde um personagem narrador, Mário Picucha, conta, a um espontâneo ouvinte, a história de sua decadência física, social e econômica, ligada à decadência dos latifundiários riograndences”.         Era filho de um fazendeiro gaúcho, que acabou na sarjeta de uma rua em Porto Alegre. Seu passado era o de um rapaz de classe média, estudante de direito, mas alienado, pois foi incapaz de compreender os acontecimentos políticos que o circundavam. No tempo do enunciado, Mário Picucha possui, apenas, um poncho e uma espada, herança sentimental da família. O apoio familiar que lhe era dado, inicialmente, já não existe, e ele se torna mendigo.

Simultaneamente à narrativa, o autor procura captar o momento político: os últimos dias de agosto de 1961, logo após a renúncia do então presidente Jânio Quadros, e a pressão feita pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, para que fosse empossado o vice-presidente João Goulart.

A narrativa assume, portanto, ao lado da história da personagem, um teor político que mostra o problema da legalidade que afetou o Brasil e que culminaria com o golpe militar, em março de 1964. Desse modo, ao texto de Moacyr Scliar insere-se o texto jornalístico, o texto da história oficial, o discurso ideológico, representativo da sociedade que o produz. Isto porque o livro é o depoimento pessoal do autor, quando retrata, denuncia uma verdade que não pode ser levada ao jornal. O narrador passar a ser, então, aquele que informa, tal qual o jornalista, que apresenta os fatos do dia a dia.

“Mês de Cães Danados” é, portanto, um GRITO DENUNCIADOR da chocante realidade apreendida.

É importante salientar que “Mês de Cães Danados”, apesar de ser um livro datado, comprometido com sua época e lugar, é uma obra atemporal. Isto porque as injustiças sociais, as torturas, as opressões, os discursos de ódio, os atentados à democracia ali narrados, podem acontecer em qualquer época e lugar, conforme vêm acontecendo aqui no Brasil. Neste cenário, é necessário que possamos compreender essa realidade política e social que nos circundam e mais que isso, criticá-la, denunciá-la e propor soluções. Essa é a responsabilidade que nos cabe hoje, mais que nunca, do contrário, seremos pessoas alienadas tão fáceis de ser encontradas no mundo de hoje.

One thought on “Um Grito Denunciado

Comments are closed.


ATENÇÃO: Você não pode copiar o conteúdo
Direitos reservados ao Jornal nos Bairros