Pedras voavam para todos os lados, os cassetetes não perdoavam ninguém, bombas de gás lacrimogêneo, gritos, choro, correria e muito desespero. Na noite do dia 28 de março de 1984, uma quarta-feira, o centro de Navegantes virou uma praça de guerra. De um lado, centenas de pessoas, a maioria entre 16 e 21 anos. Do outro, policiais armados com cassetetes, metralhadoras e revólveres. O saldo dessa batalha campal foi dezenas de feridos e sete presos. Mas o que aconteceu para provocar tanta revolta na população?
A resposta está em uma ocorrência policial registrada quatro dias antes. No sábado, dia 24 de março de 1984, o pescador Osmar José Roncálio, 25 anos, e seus amigos foram se divertir no restaurante Carecão, localizado na avenida João Sacavém, próximo à praia. Mazinho, como era conhecido, discutiu com o dono do restaurante por causa da conta. A polícia foi chamada para resolver a confusão.
Os policiais militares Nivaldo e Neur faziam plantão naquela noite. A delegacia ficava onde é hoje a Carrera Municipal (Estaleiro Público), na esquina das ruas João Emílio, Manoel Moreira Maia e 26 de agosto. Em 1984, o efetivo policial de Navegantes era de apenas três policiais militares, um comissário da Polícia Civil e o delegado, um sargento da Polícia Militar (PM). Os policiais pegaram a única viatura, um fusquinha, e foram até o Carecão.
A partir do momento que a viatura chegou ao restaurante Carecão a história passa ter duas versões. Segundo alguns clientes ouvidos pelo jornal Liberal do Vale do dia 30 de março de 1984, o pescador foi agredido pelos policiais no restaurante e também na rua. Após ter seus braços amarrados por uma corda, Mazinho foi levado para a delegacia e posto em uma cela.
Já a PM, responsável pela Delegacia de Navegantes na época, negou as agressões e apenas confirmou o uso da corda para imobilizar o pescador, já que os policiais não possuíam algemas. Ainda segundo a PM, na manhã de domingo, ao verificar a cela onde estava Mazinho, os policiais Nivaldo e Neur se depararam com o corpo do pescador pendurado na grade da porta da cela, enforcado com a mesma corda que foi usada para amarrar seus braços.
Revolta popular
A versão da Polícia Militar não foi aceita por parte da população, que organizou um protesto no dia seguinte. Eles se concentraram em frente a delegacia e pediram o afastamento do delegado titular, o então sargento da PM Nildo Batista. Naquela segunda-feira, dia 26 de março de 1984, a manifestação foi pacífica, como conta a professora Neusa Maria Rebello Vieira, 75 anos.
– Era um grupo com mais de 150 pessoas. Diziam palavrões e xingavam o delegado. O foco deles era a delegacia. Eu reconheci muito deles como ex-alunos. Eles estavam com paus e sarrafos até com pregos. Eu disse para eles que manifestação não se faz com arma – recorda.
Neusa disse que os manifestantes estavam com medo de ir até à delegacia, por isso os conduziu até lá. Depois pediu que todos se deitassem na rua.
– Quando deitaram no chão, talvez já eram umas 200 pessoas. Agora imagina, ali na esquina, indo para o Ferry Boat. Deitaram e fecharam tudo. Aí começou carro buzinar de cá, carro buzinar de lá. Eu fiquei em pé e disse para eles não se mexerem. Começou a chegar gente, fotógrafo e tudo. Eu sei que veio a TV Record e quem eles focalizam primeiro, eu que estava em pé. Levou mais de uma hora ali. Voltei para a casa – recorda.
Dois dias depois, os manifestantes se concentraram novamente em frente a delegacia. O sargento Nildo Batista tentou negociar e por pouco não foi atingido por um tijolo.
– Eles estavam fazendo um aglomero na frente da delegacia. Comuniquei o Batalhão e fui lá. Tirei a minha arma, coloquei na gaveta e fui falar com o pessoal. Eu disse que eles podiam fazer a manifestação, mas pedi para saírem da frente da delegacia. Quando eu estava voltando para a delegacia um tijolo passou do meu lado e bateu na parede. Eu fechei a porta e chamei o pelotão de choque – conta o ex-delegado, que hoje está com 71 anos.
Por volta das 21 horas, o tenente que comandava o pelotão de choque ordenou que os manifestantes dispersassem, pois, do contrário ele agiria a seu modo. Ele disse que seguia as determinações do comandante do Primeiro Batalhão de Polícia Militar de Itajaí, ao qual estava subordinado. Quando a primeira bomba de gás lacrimogêneo foi lançada a batalha começou. Os manifestantes jogavam pedras contra os policiais, que se protegiam atrás de seus escudos.
A tropa de choque avançava pela rua Manoel Moreira Maia e depois recuava para frente da delegacia com a chegada dos manifestantes. Ficou assim até que o tenente da PM decidiu dividir o grupo em dois. Um permaneceu na frente da delegacia e outro seguiu pela rua 26 de agosto, entrou na avenida João Sacavém e encurralou os manifestantes na rua Manoel Moreira Maia.
Mais bombas de gás lacrimogênio foram lançadas e os cassetetes dos policiais voavam para todos os lados. Sobrou até para quem foi ver a confusão na frente de casa. Pais que tentaram tirar seus filhos do meio da batalha também foram agredidos sem distinção.
– Uma amiga minha levou uma paulada na cabeça, ela acha que foi um cassetete. Um ex-vereador apanhou também, muita gente apanhou. Eu sei que a coisa ficou horrível. Eu vi meu primo ferido e mais outros. Eu abri o meu portão e botei para dentro alguns. Então fechei o portão, se não a minha casa seria invadida – relata a professora Neusa.
A delegacia não foi o único alvo dos manifestantes. A casa do delegado Nildo Batista, que era conhecido por “Canela”, também foi atacada naquela noite de caos em Navegantes.
– Eles disseram assim: “Canela, agora a gente vai na tua casa”. A minha mulher e as minhas filhas estavam em casa. Eu peguei os meus dois revólveres, fiquei maluco. Eu vim correndo na frente do pessoal e disparando para o alto. Pulei o muro da Colônia de Pescadores, pulei o muro da Celesc e pulei o muro de casa. Quando cheguei aqui, peguei os outros revólveres e fiquei esperando. Quando eles entraram na rua eu atirei num muro. Começou a fazer faísca. Eles viram que era de verdade e correram – lembra o ex-delegado.
A batalha terminou com o saldo de dezenas de feridos e sete presos. O jornal Liberal do Vale do dia 30 de março de 1984 publicou os nomes de Severiano Augusto Toledo, 24, Sérgio Marques Vieira, 19, Angelino Pedro Inácio, 25, Renildo de Amorim, de 26 anos, além de um menor de idade, que foi entregue ao Juizado. Todos eles foram soltos na tarde do dia seguinte.
Investigação
Depois da batalha, a Delegacia Regional de Itajaí abriu um inquérito para apurar a morte de Mazinho e identificar os organizadores da manifestação. A então diretora do Departamento de Educação de Itajaí, Neusa Maria Rebello Vieira, foi acusada pelo delegado Nildo Batista de ser a mentora do protesto. Acusação que a professora nega até hoje.
– No outro dia quando fui trabalhar, o Arnaldo Schmidt (ex-prefeito de Itajaí) me chamou e disse: “Neusa, te prepara porque a Polícia Federal vai te intimar”. Eu respondi que não fiz nada que não fosse para pacificar uma manifestação. Na sexta-feira (30/03/1984), o Arnaldo não esperou, botou um comboio de carro e até trator na rua. Ele parou na frente da minha casa e do muro da minha casa fez um discurso. Ele era pela força do direito e não pelo direito da força. Naquele dia era o meu aniversário, 30 de março – lembra.
Na Delegacia Regional de Itajaí, Neusa negou todas as acusações.
– Então eu fui e fiquei detida um dia todo. Era o delegado Branquinho (Dianari Marques Branquinho). Eu me lembro que ele disse assim: “a senhora é dona Neusa”. Eu respondi que sou. “A senhora é enquadrada.” Eu respondi que não sou enquadrada em nada delegado. Eu vim aqui na qualidade de declarante, é diferente. “A senhora fez uma coisa muito grave” disse ele. Eu disse não, vocês, a polícia fez. A polícia matou. Ele estava amarrado. Tinha a marca de queimadura de cigarro no corpo. Eu tenho uma vida limpa. Não, eu não assino nada. Ele (delegado) queria me enquadrar. Além de mim, outras pessoas também foram intimadas – disse.
Na delegacia, ela questionou a morte do pescador.
– Eu perguntei para o Branquinho: então o senhor me explica doutor, será que ele se enforcou primeiro e se amarrou depois ou se amarrou primeiro e se enforcou depois? Ele respondeu: “dona Neusa, a senhora além de tudo, é debochada.”. Eu respondi que não era e que apenas queria saber a verdade. Ele disse que ia acreditar em mim e fui liberada – conta a professora.
Para Neusa, o motivo da acusação de ser a líder da manifestação foi político.
– O meu grande pecado na época era ser MDB (Movimento Democrático Brasileiro). Era uma birra política. Eu era malvista por algumas pessoas do PDS (Partido Democrático Social) porque eu era de subir em palanque, fazer discurso de guarda-pó. Muitas vezes meus chefes (diretores e diretoras de escola) pediam que eu tirasse o guarda-pó. Eu respondia que é a minha farda, é a minha marca. O guarda-pó é meu porque eu comprei e é meu de direito porque eu sou professora. Eu tenho orgulho da minha profissão. Então essas coisas incomodam e acabam levando para o lado político e até infelizmente pessoal – desabafou a ex-diretora do Departamento de Educação de Itajaí.
Ex-delegado acredita em suicídio
O ex-delegado Nildo Batista está convicto que não houve agressão por parte dos policiais e acredita que tudo não passou de um caso de suicídio.
– É claro que ele apanhou e foi do Careca (dono do restaurante). Não foi dos policiais. Pegaram ele lá no local, prenderam e levaram para a delegacia. Eles não conheciam o Roncálio. Eles achavam que era outro. Lá no bairro São Pedro (Pontal) tinha um cara que aprontava e eles achavam que era ele. Pegaram, amarraram e levaram para a delegacia. Naquele tempo não tínhamos algemas. Naquela época o bacio (vaso sanitário) não era de presídio, era bacio mesmo. Botavam o cara lá dentro e ele quebrava tudo. Por isso amarraram ele (Mazinho) – explica.
Segundo Batista, Mazinho já era um velho conhecido da polícia e havia tentado se matar antes.
– Cheguei lá (delegacia), olhei e disse: esse é o Mazinho, o Roncálio. Ele tinha várias passagens pela delegacia por furto de residências. A última vez que o prendi, foi solto e embarcou para Santos (SP). Ele tava pendurado na grade da porta. Aí eu cortei a corda e chamei a perícia. Foi comunicada a família. Um irmão dele disse que o Mazinho tinha tentado se enforcar um mês antes, com o moletom em um pé de goiaba no quintal da casa dele – conta.
Para o ex-delegado, não existia motivo algum para matar o pescador.
– Eu sei que ele brigou com Carecão por causa da conta. Isso é motivo para enfocar alguém, para matar alguém? Se os soldados conhecessem ele tudo bem, pelo passado dele, eu ainda acreditaria. Os soldados nem conheciam ele. Se ficou com hematomas foi da briga lá. Eu tenho certeza que ele não apanhou dos policiais. Ele deve ter se soltado, a corda é fácil de soltar. Ele usou a mesma corda que o amarraram para se enforcar. Eu tenho certeza absoluta que foi um suicídio. Se ele não tivesse sido amarrado, não teria se enforcado. O único erro dos meus soldados foi colocar aquela p… daquela corda lá dentro. O cara é louco, drogado, é claro que se soltou – garante Nildo.
Ele acredita também que o caso foi usado para tirá-lo do cargo de delegado, já que naquela época era uma indicação política.
– Não posso falar nomes, mas aquilo (protesto) foi preparado por alguém. Era para me derrubar. O que eu tenho a ver? Não tenho nada a ver. Mesmo que o soldado tivesse enforcado ele, não tinha culpa, eu estava em casa. O soldado ia ser preso e responder por aquilo – reforça.
Batista confirmou que acusou a ex-diretora do Departamento de Educação de Itajaí, mas em um momento de raiva.
– A dona Neusa sempre foi minha amiga. Naquele dia eu fiquei cabreiro. Na época eu disse que tinha uma cabeça pensante que está controlando isso daí. O cara do jornalzinho, se não me engano o Diarinho, perguntou quem era e respondi: é a Neusa Rebello. A Neusa leu o jornal e veio falar comigo. O pessoal entrava e saía da casa dela. Eu achava que a casa dela era o quartel-general. Isso era a única prova que eu tinha – concluiu o ex-delegado.
Família nunca acreditou na versão da polícia
O irmão de Mazinho, Laércio José Roncálio, 75 anos, disse que a família não foi avisada sobre a morte do jovem.
– Eu estava na praia quando minha filha veio correndo dizendo que tinham matado o tio Mazinho. Ninguém sabia que ele estava preso. A polícia não avisou que ele tinha morrido. A família soube pelos outros – conta.
Laércio confirmou que o irmão tinha problema com álcool e drogas, mas negou que ele tenha tentado se matar antes. Ele também contesta a versão que os policiais não conheciam Mazinho.
– Tudo mentira. Ele (delegado) inventou isso para justificar a morte do meu irmão. O Mazinho teve problema depois da morte da nossa mãe e se envolveu com um pessoal de droga. Uma vez ele foi pego com droga, mas a gente deu uma dura nele. Depois ele embarcou. No dia que foi preso no Carecão, o pessoal falou para os policiais quem era ele. Os policias sabiam quem era o Mazinho. Ele apanhou dos policiais. O Carecão só empurrou ele – esclarece.
Ele lembra que ouviu de um policial que tinham pendurado o irmão na grade da cela.
– Um policial disse que ele estava gritando muito e para fazer parar penduraram ele na grade da porta. Uma pessoa que estava bêbada pendurada pelo pescoço ia se debater até morrer. Ele apanhou muito. No dia do velório, vimos que ele tava o corpo todo machucado, tinha marcas roxas e até nas partes íntimas. A família nunca acreditou em suicídio – protesta.
Segundo Laércio, a família até pensou em processar o Estado, mas muitas testemunhas foram ameaçadas na época.
– Muito que viram o meu irmão ser espancado e preso ficaram com medo de contar. Eles chegaram até ser ameaçados. O Rubens Menon, que trabalhava na rádio e esteve no velório do Mazinho, disse que aquilo dava um processo, mas não tínhamos dinheiro para pagar um advogado – lamenta o navegantino.
Depois do sepultamento de Mazinho, a família pediu uma nova autópsia, que comprovou as agressões e causa da morte foi asfixia por enforcamento. A Delegacia Regional de Itajaí, com o acompanhamento da Promotoria Pública, abriu um inquérito para apurar a morte do pescador. O delegado Francisco Pfitzer conduziu o inquérito.
Em entrevista ao jornal Opinião de 31 de março de 1984, Pfitzer disse que alguns hematomas encontrados no corpo de Mazinho eram de uma briga que ele teve em Santos 15 dias antes e confirmou que o resultado da necropsia apontou como causa da morte asfixia por enforcamento. O inquérito confirmou o suicídio e os policiais envolvidos na prisão não foram responsabilizados. O mesmo resultado teve a sindicância aberta pela Polícia Militar.