Foto da Capa: Moradores do bairro Machados em Navegantes na década de 1930. Crédito: Centro de Documentação e Memória Histórica de Itajaí.
A resistência contra a imunização no Brasil é antiga e já chegou mesmo a ser motivo de uma revolta popular, a revolta da vacina de novembro de 1904. O movimento antivacina, oposição organizada à vacinação pública, cresceu nos últimos anos, principalmente depois da pandemia de Covid-19. A coluna “Outros quinhentos” conta a história de um dia de trabalho de um jovem médico de Itajaí, que em 1951, convenceu os moradores de um bairro de Navegantes a se vacinarem. Um ato heroico que infelizmente nunca foi reconhecido.
Na década de 1950, o Brasil sofreu vários surtos de tifo. Na região de Itajaí, os bairros Machados, em Navegantes, e Braço do Serafim, em Luiz Alves, foram os lugares mais afetados pela doença. Lembrando que nos anos 50, tanto Navegantes quanto Luiz Alves pertenciam ao município de Itajaí. Como essas regiões não possuíam naquela época um posto de saúde, o atendimento era feito por um médico, que ficava responsável por visitar não só Luiz Alves e Navegantes, mas também Itajaí, Ilhota, Penha e Piçarras.
O tifo é uma doença grave causada por bactérias do gênero Rickettsias, transmitida pelas fezes do piolho do corpo humano ou pulgas de ratos. Seus sintomas são parecidos com a influenza: febre alta, dor de cabeça muito forte e prostração. Além do tifo, Navegantes e região sofriam também com a febre amarela e verminose, que atingia 95% da população escolar.
Em 1951, o que as autoridades sanitárias de Itajaí temiam aconteceu, um surto de tifo atingiu os moradores dos bairros Machados, em Navegantes, Braço do Serafim, em Luiz Alves. Até o final daquele ano, centenas de pessoas contraíram a doença e duas delas, moradores do bairro Machados, morreram de tifo. Isso fez o Centro de Saúde, principalmente o prefeito de Itajaí, tomar medidas urgentes para controlar o surto. As informações que seguem têm como fonte uma reportagem publicada no jornal “O Estado”, edição de 30 de novembro de 1951.
“Em Machados, que é o arrabalde da cidade, e no Braço do Serafim, Distrito de Luís Alves, neste município, está grassando o tifo assustadoramente. Na primeira das localidades, já verificaram dois óbitos”, informou o jornal.
Ao saber do surto, principalmente das duas mortes no bairro Machados, o prefeito de Itajaí, Paulo Bauer, chamou o médico José Bonifácio Malburg, então com 36 anos. Filho de uma família tradicional de Itajaí, o doutor Malburg respondia interinamente pela chefia do Centro de Saúde de Itajaí. Além de médico, Malburg também era vereador. Ele chegou à presidência da Câmara de Vereadores de Itajaí em 1953. O cargo de vereador na época não era remunerado.
O prefeito Paulo Bauer colocou à disposição do médico uma camionete e um motorista para levá-lo até os bairros Machados e Braço Serafim. O dia das visitas não foi informado pelo jornal, mas deve ter acontecido na última semana do mês de novembro de 1951. Antes de sair do Centro de Saúde de Itajaí, José Bonifácio Malburg abasteceu a camionete com 123 doses da vacina contra o tifo.
Partiram o motorista e José Bonifácio Malburg para o bairro Machados. Os moradores já aguardavam o médico, já que além dos casos confirmados, outros tantos apresentavam os sintomas. Além de atender os enfermos, o doutor José Bonifácio Malburg também faria naquele dia a imunização dos moradores dos bairros Machados e Braço do Serafim.
Com duas mortes registradas, a situação mais grave era do bairro Machados. O atendimento médico seguiu sem problema, mas ninguém demonstrou disposição em tomar a vacina. Mesmo com as mortes, os moradores tinham mais medo do imunizante, relatou o jornal “O Estado” daquele dia 30 de novembro de 1951.
“Embora o povo, pessimista por causa dos dois casos fatais registrados demonstrasse muito medo da doença, aparentava, contudo, mais medo ainda da vacina. Se me der o tifo negro, seja o que Deus quiser, era o que se ouvia da boca daqueles homens e daquelas mulheres simples e fatalistas de Machados…”
Com a resistência dos moradores, o doutor José Bonifácio Malburg teve uma ideia que provaria que a vacina não mata e sim a doença. Mesmo já imunizado, o médico se vacinou novamente na frente dos incrédulos moradores do bairro Machados. Em seguida, ele imunizou também o motorista para o espanto do público.
Como o médico e o motorista não morreram com a imunização, o que se viu em seguida foi algo inacreditável. Se antes todos estavam com medo da vacina, agora tinha até fila para ser vacinado. Em pouco tempo, o estoque da vacina contra a tifo do Centro de Saúde de Itajaí acabou. O entusiasmo com a vacinação foi tanta que o doutor Malburg esqueceu que tinha que imunizar também os moradores do bairro Braço Serafim, em Luiz Alves.
Tendo Machados consumido todo o estoque de vacinas do Centro de Saúde, a primeira providência que o doutor José Bonifácio Malburg tomou ao retornar para Itajaí foi enviar um telegrama ao diretor do Departamento de Saúde Pública de Santa Catarina, o também médico Paulo Tavares, solicitando mais vacinas. Com a experiência feita no bairro Machados, o doutor Malburg agora já sabia como convencer os moradores do bairro Braço Serafim, em Luiz Alves, a se vacinarem também.
Um médico humanitário
José Bonifácio Malburg nasceu no dia 5 de março de 1915, em Itajaí. Ele se formou em medicina no Rio de Janeiro, em 1941. O doutor Malburg trabalhou no antigo Serviço de Atendimento Médico Domiciliar de Urgência (Samdu), no Centro de Saúde de Itajaí e foi diretor do Hospital Marieta Konder Bornhausen.
Além de médico, Malburg foi vereador de 1951 a 1954, exercendo a presidência da Câmara Municipal de Itajaí de 1953 a 1954. José Bonifácio Malburg faleceu na madrugada do dia 1º de março de 1963, no hospital Marieta Konder Bornhausen, vítima de infarto, quatro dias antes de completar 48 anos. Ele era casado e deixou três filhos.
O Jornal do Povo do dia 2 de março de 1963 publicou a notícia do falecimento de José Bonifácio Malburg, a quem chamou de médico humanitário pela maneira gentil e atenciosa que atendia seus pacientes.
“O doutor José Malburg era a pessoa que exerceu a medicina com verdadeiro sacerdócio e a todos atendia com dedicação e até com carinho, motivo por que o seu prematuro desaparecimento, vítima que fora de um infarto, chocou a todas as camadas sociais.”