“Adoções caíram na pandemia; de 30 mil crianças e adolescentes em abrigos no Brasil, 25 mil estão no limbo – nem voltaram para as famílias nem entraram na fila para serem adotadas”
LIANNE CEARÁ – ESTAGIÁRIA DE JORNALISMO
O desejo da psicopedagoga Renate Priebe, 49, sempre foi ser mãe. Ela e o marido, Sidnei Castro, 57, deram entrada no processo junto ao Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre e foram habilitados em janeiro de 2018, juntando-se aos 32,7 mil pretendentes aptos para adoção espalhados pelo Brasil, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), responsável pelo Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA).
Atualmente, o Brasil tem 29,5 mil crianças e jovens acolhidos em abrigos. Desses, 16 mil foram abrigados no último ano -10 mil só nos últimos seis meses – ou seja, entraram durante a pandemia. De todas as crianças e adolescentes em abrigos, apenas 4,1 mil já cumpriram todos os trâmites legais e são considerados aptos para adoção. A cada 100 crianças disponíveis, o Brasil tem 800 pretendentes habilitados a adotar. Apesar disso, a pandemia reduziu o número de adoções. De março a dezembro de 2020, houve 2,5 mil adoções, 10,6% a menos do que no mesmo período do ano anterior. De janeiro a outubro de 2021, o número é ainda pior, com queda de 18,6% com relação a 2019.
Outro fator levado em consideração no aumento da fila é o perfil dos adotados – a maioria dos habilitados aceita crianças com até seis anos de idade; em contrapartida, a maior parte das crianças disponíveis, 1,1 mil, é maior de 15 anos, e só 892 têm menos de seis anos. Mas para a advogada e presidente da comissão de adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Silvana do Monte Moreira, as exigências sobre as crianças vêm caindo e que o real problema não é esse. “O problema não é o perfil restrito dos habilitados – que já mudou e aumentou muito – os habilitados não têm culpa de as crianças envelhecerem nos abrigos, muitas vezes, sem a destituição do poder familiar”, diz. Em 2010, 31% dos pretendentes aceitavam adotar crianças de qualquer etnia. Hoje, são 39,6%.
As outras 25,2 mil crianças são aquelas que, embora já estejam em abrigos, não foram oficialmente desligadas de suas famílias biológicas. Muitas são filhas de pais vivos. Os motivos que mais levam crianças aos abrigos são diversos, porém, os mais comuns, são protegê-las de situação de vulnerabilidade, abuso, violência familiar ou situação de rua, segundo o CNJ. Ao chegarem ao abrigo, as crianças e jovens devem passar pelo processo de busca familiar e estudo social. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) indica que esse período de institucionalização seja de, no máximo, dezoito meses. O CNJ informou que “depois desse período, o juiz precisa decidir se a criança será reintegrada à família de origem ou se poderá ser adotada”. Já o prazo para destituição familiar é de 120 dias.
Na prática, Silvana Moreira afirma que os prazos são comumente extrapolados pela própria Justiça. “O prazo de dezoito meses de institucionalização não é respeitado. O de destituição familiar chega a sete anos e meio, em média. Nenhum dos prazos estabelecidos no ECA é respeitado, e não há sanção nenhuma. É a lei contrariando a própria lei. Enquanto isso, as crianças passam anos e anos no abrigo, viram filhas do Estado”, explica. Isso tudo faz do Brasil um cenário que a especialista considera “o pior possível”: uma fila longa de gente querendo adotar, quando, na verdade, há milhares de crianças em abrigos. A perda dos prazos e a negligência acabam fazendo com que muitas das crianças e jovens só saiam dos abrigos aos 18 anos, quando já não podem mais ficar. “Esses são os nossos nem-nem, estão no limbo jurídico, nem voltaram para a família biológica nem foram disponibilizados para adoção. A maioria sai do abrigo aos 18. Serão filhos de ninguém indo para lugar nenhum”, afirma Moreira.
Ao Judiciário, a pandemia trouxe, ainda, a dificuldade com a digitalização. “Nosso setor foi a penúltima competência a ser digitalizada”, diz Silvana Moreira, completando que “só agora estão atualizando os processos do Rio de Janeiro, mas isso não aconteceu só aqui”. Como a advogada previa, no Rio Grande do Sul, Renate também enfrentou problemas parecidos. Em dezembro do ano passado, o casal gaúcho renovou o interesse em continuar na fila da adoção através de e-mail. No entanto, em outubro deste ano, ao ligar para saber como andava o processo, foi informado de que a renovação não tinha sido digitalizada. “Isso já me deu um nervoso. Como assim? A gente oficializou a renovação, fez tudo certinho”, lembra. Nos dias que se seguiram, o problema foi solucionado, mas a angústia poderia ter sido evitada.